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Cisão societária e contratos administrativos

Por Felipe Estefam (felipe@estefamhaddad.com.br)

 

Introdução. 1. O problema da capacitação da cindenda para a execução de objeto contratual. 2. O problema da permissão editalícia da cisão e os demais requisitos para a sua realização. 3. O problema da liberdade para a reorganização societária versus os poderes da Administração Pública: o necessário diálogo entre as partes envolvidas. 4. Considerações finais. Referências.

 

Introdução

É cada vez mais comum a reestruturação societária de empresas pela cisão de seus patrimônio e acervo durante a execução de contratos públicos. O que se propõe a discutir são alguns desafios da cessão contratual à empresa cindenda, à luz do regime jurídico de direito administrativo.

 

1. O problema da capacitação da cindenda para a execução de objeto contratual

Conforme o art. 229 da Lei nº 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas), a cisão é “a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão”.

A cisão se dá por meio da transferência de parcelas do patrimônio, envolvendo ativos e passivos. Na cisão parcial, a cindenda absorve parcela do patrimônio da cindida e sucede a esta nos direitos e nas obrigações relacionados no ato da cisão e, com a cisão total, extingue-se a sociedade cindida, com a versão de seu patrimônio ao das sociedades cindendas.

Enquanto a cisão total é medida excepcional, a cisão parcial justifica-se, por exemplo, em situações em que a atividade da empresa deve ser apartada, por conveniências operacionais ou por razões de planejamento tributário.

De todo modo, a cindenda não se caracteriza como uma empresa absolutamente distinta da empresa cindida, haja vista que é sucessora de direitos e obrigações anteriormente detidos pela cindida. Vale sublinhar, o acervo técnico e humano, a expertise e o know-how da empresa cindenda advém daquilo que lhe é expressamente transferido da cindida.

Com efeito, realocando-se a parcela cindida que detém o acervo técnico e humano, a expertise e o know-how em outra pessoa jurídica, esta empresa adquire a capacitação anteriormente detida pela empresa cindida, e, então, a “empresa receptora dessa unidade de negócios sucederá, neste particular, à cindida e, portanto, legará, em tese, a capacidade técnica, operacional, gerencial, etc., que antes se encontrava agregada e diluída dentro da empresa indivisa.”[1]

A partir dessas ideias, pode-se propugnar que é possível que a empresa cindenda sirva-se dos atestados de capacitação técnica que, embora emitidos em favor da cindida, foram incorporados, no processo de cisão, em seu patrimônio.

Fácil perceber, então, a licitude da cessão contratual para as cindendas em cenários em que o segmento que abarque a pertinente expertise da cindida seja absorvido pela cindenda.

 

2. O problema da permissão editalícia da cisão e os demais requisitos para a sua realização

A lei n. 8.666/93 estabelece que a cisão não admitida no edital e no contrato constitui motivo para rescisão do contrato (art. 78, VI). A preocupação da lei é a de que a reestruturação societária pela cisão venha a prejudicar ou inviabilizar a execução do contrato, e o juízo concreto sobre se a cisão traz ou não problemas à contração é feito pelo edital que pode proibi-la ou permiti-la.

Há no repertório jurisprudencial do TCU o entendimento segundo o qual é possível dar continuidade a contrato firmado com empresa submetida à reorganização empresarial apenas se tal reestruturação estiver permitida no edital e no contrato.[2]

Entretanto, o entendimento mais recente da mesma Corte permite a cisão não prevista no edital, nos seguintes termos:

“ante os princípios da razoabilidade e do interesse público, não reputo pertinente proceder-se à rescisão do contrato nº 071/2000-RAJ, apenas pelo fato de não estar expressa, tanto no edital como no instrumento citado, a possibilidade de ser realizada cisão, nos termos do inciso VI, já que o próprio artigo 78 da Lei nº 8.666/93, usado como fundamento para tanto, também prevê, em seu inciso XI, que constitui motivo para a rescisão contratual “a alteração social ou a modificação da finalidade ou da estrutura da empresa que prejudique a execução do contrato”(grifei), o que, como já demonstrado, não se verifica na situação em análise.”[3]

Na linha deste último entendimento, a doutrina ensina que, sendo o edital silente sobre o impedimento da cisão, “deve-se resolver o problema pela verificação da existência de prejuízo à execução do contrato ou à infringência a algum princípio jurídico norteador da atividade administrativa.”[4]

É o que também ficou assente no âmbito do TCU: “9.1.1. se não houver expressa regulamentação no edital ou no termo de contrato dispondo de modo diferente, é possível manter vigentes contratos cujas contratadas tenham passado por processo de cisão, incorporação ou fusão, uma vez feitas as alterações subjetivas pertinentes, bem como celebrar contrato com licitantes que tenham passado pelo mesmo processo, desde que, em qualquer caso, sejam atendidas cumulativamente as seguintes condições: 9.1.1.1. observância pela nova empresa dos requisitos de habilitação de que trata o art. 27 da Lei 8.666/93, segundo as condições originalmente previstas na licitação; 9.1.1.2. manutenção de todas as condições estabelecidas no contrato original; 9.1.1.3. inexistência de prejuízo para a execução do objeto pactuado causado pela modificação da estrutura da empresa; e 9.1.1.4. anuência expressa da Administração, após a verificação dos requisitos apontados anteriormente, como condição para a continuidade do contrato; (…)”.[9]

Nesse passo, quando o edital não veda a cisão, a sua realização depende da demonstração de que (i) a cisão não gera riscos à execução do contrato administrativo, (ii) foram preservadas todas as condições de qualificações técnica e econômica que sustentaram a contratação e (iii) ficam mantidas as condições estabelecidas no contrato original.[5]

Por oportuno, é possível que se edite regulamentação específica sobre os requisitos a serem atendidos no caso de reorganização societária. É o que fez o Decreto Federal nº 6.654/08 que aprova o Plano Geral de outorgas de serviço de telecomunicações prestado no regime público.

No específico regime jurídico da lei n. 8.987/95 (lei das concessão e permissão da prestação de serviços públicos), deve-se observar o seu art. 27, caput que assim estabelece: “A transferência de concessão ou do controle societário da concessionária sem prévia anuência do poder concedente implicará a caducidade da concessão.” No regime das concessões de serviço público, o “ato de anuência” é rigorosamente prefigurado pela lei, a qual estabelece os requisitos e condições de sua realização. O referido art. 27 traz os requisitos objetivos para a anuência, em seu § 1º (incisos I e II), a saber: (i) atendimento das exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira e regularidade jurídica e fiscal necessárias à assunção do serviço; e (ii) comprometimento com todas as cláusulas do contrato em vigor.

Sendo assim, nas concessões de serviço público, a anuência da Administração Pública é obrigatória e “quando da análise de anuência do pedido de transferência do concessionário, o que o Poder Concedente deverá aferir é se serão mantidas as condições objetivas da contratação, especialmente as relacionadas à manutenção da adequada prestação dos serviços públicos – em razão do disposto no artigo 6º da Lei nº 8.987/1995 –, do que se depreende a constitucionalidade da alteração subjetiva dos contratos de concessão.”[6]

Adotando-se este pensamento, que pode ser estendido para todas as figuras contratuais do direito administrativo, a natureza personalíssima (intuitu personae) deixa de ser uma feição imprescindível, pois, se a alteração subjetiva for a melhor forma de atender ao interesse público, este último deve prevalecer.[7]

Sobre esta discussão, tratando sobre a natureza personalíssima dos contratos administrativos, a AGU tem o entendimento de que a vedação à alteração subjetiva visa impedir maus usos que podem ser feitos dos instrumentos previstos na lei, tal como ocorre pelo instituto da sub-rogação contratual. Cabe ao administrador acompanhar a reestruturação e examinar o caso concreto.[8]

De todo modo, convém repisar que a cindenda não pode ser considerada como um terceiro, estranho ao certame, pois é uma parcela (à qual foi conferida personificação jurídica) do que antes era um todo (a empresa cindida).

Percebe-se que os requisitos para a reestruturação pela cisão visam precaver qualquer inconsideração sobre o interesse público que reveste o serviço executado pelo particular. Em contato com o caso concreto, o administrador público, ouvindo e considerando as manifestações dos interessados, deve decidir qual a medida que melhor atende o interesse público, previsto no ordenamento jurídico.

A discussão sobre a autorização ou não pelo edital deve ser levada a outro nível. A ponderação em concreto feita pela decisão administrativa, que aprecia a licitude ou não da cisão, pode vir a chocar-se com a ponderação feita em abstrato pelo edital e, por consequência, o comando deste último pode vir a ser não aplicado, em razão da sua incompatibilidade com um princípio constitucional, com maior peso, desvendado pelo administrador ante as circunstâncias fáticas.

Enfim, pode ocorrer de o edital permitir a cisão, mas diante das circunstâncias concretas a cisão não ser a melhor medida, como pode também ocorrer de o edital ser silente (ou mesmo não permitir a reestruturação societária) e a cisão vir a melhor atender o interesse público no caso concreto. Os requisitos para a cisão ganham importância, pois conferem parâmetros mais precisos para a decisão administrativa e, via oblíqua, do controle desta.

 

3. O problema da liberdade para a reorganização societária versus os poderes da Administração Pública: o necessário diálogo entre as partes envolvidas

A lei n. 8.666/93 confere ao particular ampla oportunidade para evidenciar a legitimidade de sua intenção de reorganização societária (art. 78, § único). O processo administrativo previsto no citado art. 78, § único não suprime, porém, a possibilidade de o particular incitar a manifestação da Administração Pública anteriormente à cisão.

Aliás, é recomendável que se adote tal medida, pois o art. 78, § único versa sobre um processo administrativo de natureza sancionadora, ao passo que a outra via aqui sugerida busca a discussão com a Administração, em um cenário não conflituoso, a fim de alcançar um resultado equilibrado e razoável.[10]

De toda maneira, tanto no regime jurídico da lei n. 8.666/93, como no das concessões de serviço de público, a decisão administrativa deve ser precedida de amplo e paritário diálogo e de apreciação pela Administração das informações disponíveis. Ademais, ao decidir, imperativo que a Administração se sirva dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, a fim avaliar a melhor solução para o interesse público.

Nessa empreitada, é preciso que a avaliação administrativa seja abrangente, a ponto de harmonizar todos os valores e fins públicos previstos na Constituição. O voto revisor do Ministro Benjamin Zymler, no já mencionado TC 013.546/2002-0, revela:

“O administrador está sempre sujeito a se deparar com uma situação em que a observância da legalidade estrita trará grandes prejuízos ao interesse público e acaba agindo de forma diversa. Este Tribunal, rotineiramente, analisa situações dessa natureza e muitas vezes deixa de responsabilizar ou punir o gestor, quando ele demonstra que o descumprimento de uma norma se deu por motivo relevante e que atendeu o interesse público. Qualquer que seja a resposta a uma consulta, o caso concreto poderá ensejar uma ação do administrador em sentido diverso daquele indicado pelo Tribunal em caráter normativo”.

As relações jurídicas travadas entre a Administração Pública e o particular são necessárias para a própria sobrevivência do interesse público, pois a atividade administrativa não prescinde da cooperação dos particulares. As razões do particular não podem ser desconsideradas pela Administração, cuja decisão deve ser precedida de amplo debate e deve ser motivada, justificando-se a medida tomada.

 

Considerações finais

Tudo considerado, o regime jurídico de direito administrativo permite a promoção de cisão pela empresa contratada, desde que atendidos os preestabelecidos requisitos previstos em lei. Em termos mais gerais, o ordenamento jurídico veda a reorganização empresarial que atente contra o interesse público, que gere prejuízos à prestação dos serviços públicos e não aquela reorganização lícita, fruto da mera “necessidade enfrentada pelas empresas de se manterem competitivas”.[11]

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREITAS, Rafael Véras de. O regime jurídico do ato de transferência das concessões: um encontro entre a regulação contratual e a extracontratual. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 13, n. 50, p. 167-196, abr./ jun. 2015.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Ed. Dialética, 9ª edição, 2002.

MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Reorganização societária, cisão empresarial e contrato administrativo. Boletim de Direito Administrativo – BDA, n. 3, p. 349, maio 2001.

SCHIRATO, Vitor Rhein. Legitimidade processual e tipos de processo administrativo. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 12, n. 62, p. 83-124, jul./ago. 2010.

[1] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Reorganização societária, cisão empresarial e contrato administrativo. Boletim de Direito Administrativo – BDA, n. 3, p. 349, maio, 2001.

[2] TCU, Acórdão 1108/2003 – Plenário, Relator Ubiratan Aguiar, processo 013.546/2002-0.

[3] TCU, Acórdão 1517/2005 – Plenário, Relator Lincoln Magalhães da Rocha, processo 009.985/2004-0.

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Ed. Dialética, 9ª edição, 2002, pág. 537.

[5] Conforme o enunciado do Acórdão nº 2.641/2010 – Plenário do TCU: “Contratação de serviços de duração continuada: 2 – Requisitos para alteração societária do contratado. Ainda na tomada de contas especial resultante de inspeção realizada na contratação da empresa Gtech Brasil Ltda. pela Caixa Econômica Federal, a qual teve como objeto a operacionalização de serviços lotéricos e não lotéricos prestados pela rede de lojas lotéricas credenciadas pela Caixa em todo o país, duas das irregularidades versaram sobre as mudanças societárias pelas quais passou a empresa originalmente contratada, a Racimec Informática Brasileira S.A., “cujo controle teria passado para a empresa Gtech Brasil Holdings, subsidiária da empresa norte-americana Gtech Corporation, configurando incorporação da empresa contratada”. A unidade técnica entendeu que as mudanças societárias atenderam aos requisitos do Acórdão 1.108/2003-Plenário, quais sejam: I) a possibilidade estar prevista no edital e no contrato, nos termos do art. 79, inciso VI, da Lei 8.666/1993; II) serem observados, pela nova empresa, os requisitos de habilitação estabelecidos no art. 27 da Lei 8.666/1993, originalmente previstos na licitação; e III) serem mantidas as condições definidas no contrato original. Todavia, o relator ressaltou não ser necessário “que o edital e o contrato expressamente prevejam a possibilidade de alteração societária da contratada para que o contrato subsista à modificação. Se o edital ou contrato não veda a alteração da pessoa da contratada, por fusão, incorporação ou cisão, o contrato pode subsistir se a reestruturação não trouxer qualquer prejuízo à sua execução ou aos princípios da administração pública”, em razão do Acórdão 634/2007 – Plenário. O Plenário acolheu o voto do relator. Acórdão nº 2641/2010 – Plenário, TC-002.365/2004-3, Rel. Min. Augusto Nardes, 6.10.10 (Informativo 210-37).”

[6] FREITAS, Rafael Véras de. O regime jurídico do ato de transferência das concessões: um encontro entre a regulação contratual e a extracontratual. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 13, n. 50, p. 167-196, abr./ jun., 2015.

[7] Há o entendimento segundo o qual: “é possível concluir que a natureza personalíssima (intuitu personae) não se coaduna mais com a feição atual dos contratos administrativos. Primeiro, porque o que o contratante visa é a qualidade dos serviços prestados, e não à contratação de determinado agente (salvo nas hipóteses de contratação por inexigibilidade); segundo, porque a mutabilidade das relações contratuais pode apontar no sentido de que a alteração subjetiva do contrato seria a melhor forma de atender ao interesse público. (…) Se tal assertiva é verdadeira para os contratos tradicionais de empreitada, com muito mais razão deve ser transposta para os contratos de concessão, como será desenvolvido no próximo item.” (FREITAS, Rafael Véras de. O regime jurídico do ato de transferência das concessões: um encontro entre a regulação contratual e a extracontratual. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 13, n. 50, p. 167-196, abr./ jun., 2015).

[8] Parecer n. 01/2015/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU, processo n. 00407.000226/2015-22.

[9] TCU, Acórdão 634/2007 – Plenário, Relator Augusto Nardes, processo 009.072/2006-0.

[10] São quatro os tipos de processos administrativos: (i) os de natureza declaratória, cuja destinação é declarar algo em relação a um particular, (ii) de natureza constitutiva que se destinam a constituir um direito em favor dos particulares, (iii) de natureza normativa, os quais visam à produção de um ato normativo, (iv) de natureza sancionadora, cuja destinação é a imposição de uma sanção a um particular em vista do descumprimento de uma determinada obrigação. (SCHIRATO, Vitor Rhein. Legitimidade processual e tipos de processo administrativo. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 12, n. 62, p. 83-124, jul./ago. 2010. p. 88 et seq.).

[11] TCU, Acórdão 634/2007 – Plenário, Relator Augusto Nardes, processo 009.072/2006-0.

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