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Governança corporativa nas empresas estatais

Felipe Estefam (felipe@estefamhaddad.com.br)

 

Cada uma das entidades que compõem a administração indireta tem o seu propósito definido pelo Decreto-Lei nº 200/67. As autarquias destinam-se a executar atividades típicas da Administração Pública, de um modo descentralizado; as fundações, ao “desenvolvimento de atividades que não exijam execução por órgãos ou entidades de direito público” e, finalmente, as estatais para “a exploração de atividade econômica”.

Per se, o termo “empresas estatais” intrinsicamente sugere a dicotomia de ser “pública” e “empresa” (ou “privado”) concomitantemente. As empresas estatais são concebidas para alcançar a eficiência econômica e operacional, e, ao mesmo tempo, servir os objetivos sociais, públicos e políticos. Gerir uma estatal, portanto, requer uma busca contínua pelo equilíbrio de interesses.

No mundo jurídico, as dificuldades se agravam, pois há controvérsias sobre a medida em que o regime das empresas estatais aproxima-se do das empresas privadas, em que pese a personalidade jurídica de direito privado das primeiras e a referência constitucional à aplicação de regime jurídico próprio das empresas privadas (art. 173, § 1º, I da Constituição). A discussão acalora-se ainda mais ante a existência de estatais que não exploram atividade econômica, mas prestam serviços públicos, o que torna o regime jurídico aplicável nestes casos mais próximo ao das autarquias.

A verdade é que o regime jurídico das empresas estatais é bem peculiar. Embora criadas com personalidade de direito privado, elas sofrem o influxo de regras de direito público. Quando prestam serviços públicos, são atingidas por preceitos de direito público com uma carga mais acentuada do que ocorre com as empresas que exploram atividades econômicas.

De todo modo, governar uma estatal é muitas vezes um ato de balanceamento de diferentes propósitos e normas advindos do Estado (o “público”), mercado (o “privado)” e sociedade civil (interesses mistos). Esse balanceamento diz respeito às concepções possivelmente antagonistas assumidas pela perspectiva dos atores de governança internos (membros do Conselho, Presidente, funcionários, etc.), dos atores de governança externos (Presidência, ministros etc.), do mercado (acionistas, analistas de investimento, banqueiros etc.) e da sociedade (partidos políticos, grupos de interesse de consumidores, grupos ambientais etc.).

Assim, a public enterprise governance deve ser percebida em termos da dinâmica entre os atores destes três campos de governança. Mas não só: assim como nas companhias privadas não estatais, a adoção do sistema da boa governança é uma necessidade atual para a captação de recursos no mercado, para a eficiência da gestão e entrega de um elevado nível de serviço à sociedade.

Conforme a lei federal n.º 13.303/16: “O estatuto da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias deverá observar regras de governança corporativa, de transparência e de estruturas, práticas de gestão de riscos e de controle interno, composição da administração e, havendo acionistas, mecanismos para sua proteção, todos constantes desta Lei” (art. 6º).

Note-se, ainda, que o art. 12, inciso II da referida lei determina que a estatal deve “adequar constantemente suas práticas ao Código de Conduta e Integridade e a outras regras de boa prática de governança corporativa (…)”.

A ideia de assegurar um governo empresarial estratégico, com transparência e obediência às leis (compliance), compatibilizando os interesses internos e externos da empresa na exploração da atividade empresarial é o escopo do sistema da governança corporativa.

Se essa harmonização é importante nas empresas privadas, imprescindível ela é nas empresas estatais, ainda mais em um cenário de crise de credibilidades nas instituições estatais. Uma questão delicada aqui e que merece atenção politica é a de que, embora tenha havido tentativas, ainda não há regulamentação que estabeleça critérios objetivos para a escolha e qualificação profissional de conselheiros e diretores nas estatais.

Nas estatais, é duvidoso se os representantes indicados pelo governo federal entendem do core business da companhia. Por exemplo, o caso da Refinaria de Pasadena, embora sob apreciação do TCU, revela, no mínimo, inexperiência dos gestores da Petrobras.

Como consignou o TCU (processo nº 005.406/2013-7), para “desempenharem o papel que lhes compete, os membros do conselho de administração devem estar cônscios de que são responsáveis por identificar desvios relevantes entre a estratégia empresarial e as decisões específicas que requeiram sua expressa anuência.”

Grave também é a utilização de postos nas estatais para engordar salários de Ministros e servidores do alto escalão. Foi o que, na ação popular nº 50036433.7.2012404.7104 (Justiça Federal, Seção Judiciária do Rio Grande do Sul), o Ministério Público Federal entendeu: “a atuação dos ministros nos conselhos consultivos das estatais se constitui em artifício empregado com a finalidade de proporcionar remuneração acima do teto constitucional para integrantes do alto escalão do governo”.

Justamente para evitar distorções no uso das atribuições dos dirigentes da estatal que a governança se firma. Segundo o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, os princípios da governança corporativa são: (a) transparência tanto nas relações, disponibilizando para as partes interessadas as informações que sejam de seu interesse; (b) equidade mediante o tratamento justo de sócios e partes interessadas; (c) prestação de contas (accountability) e (d) responsabilidade corporativa, incorporando aqui preocupação com o capital social e ambiental.

Especificamente para o setor público, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em seu OECD Guidelines on Corporate Governance of State-Owned Enterprises, fornece diretrizes sobre a governança:

  • Existência de efetivo marco regulatório legal para as empresas estatais. Devem-se garantir condições equitativas em relação ao setor privado e haver separação clara das funções do Estado-regulador, Estado-empresário etc.;
  • O Estado deve agir como um proprietário/empresário informado e ativo e estabelecer uma clara e consistente política de gestão, garantindo que a governança da estatal seja realizada de modo transparente e responsável, com o necessário grau de profissionalismo e eficácia;
  • Tratamento equânime de todos os acionistas;
  • Reconhecimento e respeito dos direitos dos acionistas;
  • Elevado padrão de transparência e divulgação, com a adoção de procedimentos eficientes de auditoria interna e realização de auditoria externa independente;
  • Os conselhos das estatais deve ter a autoridade necessária, competências e objetividade para realizar sua função de direção estratégica e acompanhamento da gestão. Devem agir com integridade e ser responsáveis por suas ações.

Nessa linha, no Decreto Federal nº 6.021/07, que cria a Comissão Interministerial de Governança Corporativa e de Administração de Participações Societárias da União, definiu-se governança corporativa como um conjunto de práticas de gestão, envolvendo, entre outros, os relacionamentos entre acionistas ou quotistas, conselhos de administração e fiscal, ou órgãos com funções equivalentes, diretoria e auditoria independente, com a finalidade de otimizar o desempenho da empresa e proteger os direitos de todas as partes interessadas, com transparência e equidade, com vistas a maximizar os resultados econômico-financeiros das empresas estatais.

Um exemplo interesse de avanço foi dado pelo revogado Decreto Federal n.º 8.578/15 que instituía, na estrutura organizacional do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, o Departamento de Coordenação e Governança das Empresas Estatais, que era responsável pela coordenação da elaboração do programa de dispêndios globais e da proposta do orçamento de investimento das empresas estatais; pela promoção da articulação e a integração das políticas das empresas estatais; pelo processamento e disponibilização de informações econômico-financeiras encaminhadas pelas empresas estatais; pela manifestação sobre importantes assuntos relacionados às empresas estatais.

Atualmente, a estrutura organizacional do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão conta com a Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (Decreto Federal n.º 9.035/017). Esta Secretaria, conforme o art. 41 do Decreto, tem competência para coordenar e acompanhar diversas medidas de governança na atuação das estatais.

Note-se, por oportuno, que um dos pioneiros em matéria de governança foi o Estado de Minas Gerais, o qual, por exemplo, editou o hoje revogado Decreto nº 44.799/2008. Este Decreto criou o Comitê de Governança Corporativa que tinha por competência acompanhar a gestão das sociedades de economia mista, empresas públicas e demais empresas controladas direta ou indiretamente pelo Estado, oferecendo subsídios aos seus representantes eleitos ou indicados nos órgãos colegiados.

Evidente e finalmente, a solidificação e implementação de regras claras de governança tende a provocar mudanças significativas na gestão das estatais, respondendo à crise de credibilidade que acomete a administração pública brasileira, bem como a fortalecer à transparência, eficiência e moralidade na gestão empresarial estatal.

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