Introdução. 1. Contornos basilares da improbidade. 2. O problema do esvaziamento do dolo no art. 9º e 11. 3. A inconstitucionalidade da culpa levíssima ou leve no art. 10. Considerações finais. Referências.
A Lei n. 8.429/92 trata sobre três espécies de ato de improbidade. Em seu art. 9º, a lei aventa os atos de improbidade que importam em enriquecimento ilícito; no art. 10, a lei aborda os atos de improbidade que causam lesão ao erário e, por fim, no art. 11, a lei versa sobre os atos de improbidade que atentam contra os princípios da Administração Pública. Enquanto que nos arts. 9º e 11 não se fala, expressamente, em dolo ou culpa, no art. 10 estatui-se, textualmente, a culpa na tipificação do ato ímprobo.
A discussão que se propõe é a do esvaziamento do dolo nos artigos 9º e 11 ante a decisões judiciais que reconhecem a improbidade sem verificar se o agente tenha pretendido alcançar o fim vedado pela norma, bem como a da inconstitucionalidade da culpa leve ou levíssima no art. 10.
Inadvertidamente, alguns utilizam-se das expressões corrupção, improbidade, imoralidade administrativa e ilegalidade como se fossem absolutamente sinônimas. Juridicamente, porém, a corrupção é sempre um crime, enquanto que há atos de improbidade que também constituem crime, mas nem todo ato de improbidade tipifica-se como crime.
A questão da moralidade administrativa, por sua vez, diz respeito à proteção de valores morais juridicizados e, associado ao princípio da moralidade administrativa, o princípio da probidade administrativa consiste na proibição de atos inequivocamente desonestos ou desleais para com o Poder Público, praticados por agentes seus ou terceiros, concretizado por tipificações e mecanismos sancionatórios inscritos na Lei nº 8.429/92”.[1]
Note-se que o princípio da probidade não se confunde com o da legalidade, mesmo o conceito de legalidade comportar, além de seu aspecto formal (origem parlamentar), um aspecto axiológico, o qual protege os valores e princípios adotados pela Constituição que devem orientar a atuação dos Poderes do Estado. Vale frisar que o artigo 2º, parágrafo único, inciso I, da Lei n. 9.784/99, que disciplina o processo administrativo federal, exige da Administração a “atuação conforme a lei e o Direito”.[2]
É que a ilegalidade é a desconformidade formal e axiológica da conduta administrativa em relação ao ordenamento, ao passo que a improbidade se caracteriza pela intenção do agente em praticar a ilegalidade ou adotar conduta contrária aos princípios básicos da Administração.[3]
Assim, a mera ação em desacordo com a lei não implica a prática de conduta ímproba, pois a “improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente.”[4] Juarez Freitas entende que condutas culposas leves ou levíssimas não podem configurar improbidade administrativa:[5]
“as cominações relativas às múltiplas espécies de improbidade administrativa não se devem aplicar aos agentes que tenham condutas “culposas leves ou levíssimas”, exatamente em função do telos em pauta e por não se configurar a improbidade, nestas situações, sequer por violação aos princípios fundamentais, sendo de grifar que a preservação do sistema não se coaduna com excessos ou desproporcionalidades supostamente moralistas”.
Em verdade, a caracterização da improbidade administrativa exige que o agente, ao praticar o ato “tenha apresentado o ânimo de violar a lei ou assumido conscientemente o risco de fazê-lo; a intenção de desatender aos princípios norteadores da atividade administrativa; tenha, enfim, praticado ato de má-fé, especialmente repugnado pelo Direito. A improbidade se constata na análise subjetiva do móvel do agente e não no simples confronto objetivo do ato com a lei.” [6]
Tipificar, portanto, um ato como ímprobo exige seja demonstrado que o intento do agente estava voltado ao descumprimento da lei, porquanto improbidade é “desonestidade, mau caráter, falta de probidade.”[7] Para o STJ, a lei de improbidade alcança o administrador desonesto (e não o inábil).[8] São requisitos fundamentais à configuração da improbidade administrativa: (i) grave violação ao senso médio superior de moralidade e (ii) inequívoca intenção desonesta, não bastando a ilegalidade, sob pena de moralismo não universalizável e, portanto, imoral.[9]
Fácil perceber, então, que não se pune pelas penas de improbidade administrativa a conduta indevida, deficiente ou irregular, mas aquela cujo ânimo do agente dirigiu-se à desobediência do comando normativo. Deve haver o ânimo de infringir a lei ou se assumido conscientemente o risco de fazê-lo; deve haver a intenção de desobedecer aos princípios norteadores da Administração; deve haver prática de ato de má-fé repugnado pelo Direito.
Como visto, mesmo que a conduta administrativa seja contrária à lei, apenas pode ser considerada improbidade administrativa caso tenha sido produzida com fraude, desonestidade e intencional vontade do agente de prejudicar o interesse público.
Pacificou-se no âmbito do STJ[10] que o enquadramento de condutas nos arts. 9º e 11 requer a constatação do elemento subjetivo doloso do agente. Com essa conquista, o grande desafio do momento encontra-se na devida avaliação judicial da conduta do agente, a fim de desvendar o seu intento ou não em alcançar-se o resultado vedado pela norma.[11]
Ora, “O dolo não se resume à antevisão do resultado; envolve o elemento intencional de causação do resultado lesivo ao erário. São suas características, segundo Guilherme de Souza Nucci, a abrangência (o dolo deve envolver todos os elementos objetivos do tipo); a atualidade (o dolo deve estar presente no momento da ação, não existindo dolo subsequente nem dolo antecedente); e a possibilidade de influenciar o resultado: é indispensável que a vontade do agente seja capaz de produzir o evento típico”.[12]
É preciso, desse modo, que o magistrado analise o contexto fático e não apenas a mera violação à lei. Não adotando tal conduta, o grande risco é o da consagração da responsabilidade objetiva em matéria de improbidade administrativa, o que não é permitido pelo ordenamento jurídico.[13]
A esse respeito, José Roberto Pimenta Oliveira ensina: “O núcleo da norma está direcionado para a inadmissibilidade de tipificação ou aplicação de sanção estatal fundada na responsabilidade objetiva. As penalidades estatais só constituem atos válidos quando considerada o plano da subjetividade na conduta dos sujeitos ativos violadores da ordem jurídica.”[14]
Desse modo, é preciso que fique clara a ilegalidade da conduta, assim como o dolo do agente, a partir de circunstâncias em que sua má-fé emerja. Nesse enfoque, tem-se, por exemplo, que a alínea “g” do inciso I do art. 1º da LC nº 94 que prevê como causa de inelegibilidade a rejeição de contas por vício insanável que configure ato doloso de improbidade, só pode incidir a partir da devida valoração judicial sobre os contornos da improbidade.
Do mesmo modo, quando se alega improbidade de um agente, ilustrativamente, baseada em descumprimento de convênio ou contrato administrativo, é preciso examinar as peculiaridades circunstanciais do caso, a participação dos envolvidos de acordo com as regras de repartição de competências e deveres assumidos etc.
O que a ordem jurídica requer é que o alguém que aplique o direito legislado promova a contento a subsunção do fato à sua hipótese e constitua, se for o caso, a relação jurídica prescrita no consequente da norma.
Em outros termos, a norma não incide automaticamente. O aplicador deve interpretar o direito, observar o plano da realidade social, vertido em provas processuais, e, em seguida, gerar a norma jurídica judicial. Enfim, a função jurisdicional deve verificar se todos os requisitos legais para a configuração da improbidade, realmente, ocorreram.
A crítica, portanto, é àquelas decisões judicias que se limitam a verificar as ilegalidades e aplicam as pesadas sanções previstas no artigo 12 da Lei 8.429/92, desconsiderando que improbidade e ilegalidade não são sinônimos. É preciso que haja, ao mínimo, (i) a correta apreciação e valoração judicial sobre as circunstanciais do caso concreto, sob pena de se consagrar a responsabilidade objetiva e (ii) a devida avaliação da conduta do agente que deve revelar a sua vontade em atingir um resultado proibido pelo ordenamento jurídico.
Sobre o art. 10, há o entendimento que admite a configuração de improbidade por ato culposo.[15] Mas, o importante é saber que o ato de improbidade administrativa e as pesadas sanções previstas no artigo 12 da Lei 8.429/92 demandam que a conduta tenha suficiência para o seu amoldamento no referido artigo.
A grande virada aqui é a de que não se pode simplesmente presumir a existência de improbidade; é preciso que a culpa seja “grave, próxima do dolo, a denominada culpa consciente, devendo refletir uma conduta desonesta do agente público, caracterizada pelo desleixo no trato da coisa pública.”[16]
Cabe, assim, ao magistrado avaliar o grau de violação e a extensão do dano, “desconsiderando-se a infração leve ou levíssima e que não revelar inequívoca desonestidade.”, sob pena de se cometer “desproporcionalidades irremissíveis, numa afronta manifesta ao próprio princípio da moralidade”. [17]
Isso porque a improbidade pressupõe a ofensa à ordem jurídica, à moralidade administrativa e também requer grave desvio ético. É por tal razão, aliás, que alguns respeitáveis juristas entendem inexistente a improbidade em casos de culpa:
“Como falar em grave desvio ético sem que o agente ao qual se imputa ofensa à ordem jurídica tenha se conduzido sem propósito viciado, eivado de má-fé, sem consciência da antijuridicidade do resultado a que, afinal, tenha dado causa? Só há grave desvio ético quando alguém atua revelando, repita-se, móvel viciado, má intenção, desígnio moralmente reprovável, a ensejar reação mais severa da ordem jurídica do que a prevista para fulminar de nulidade atos meramente em descompasso com a ordem jurídica, ou para apenar administrativamente um servidor ou obrigá-lo à reparação civil do dano causado.”
Tem-se que a ofensa à ordem jurídica deva ser qualificada pela específica censurabilidade ético-jurídica de quem se revela desonesto; é preciso que haja grave e efetivo desvio ético-jurídico, de tal maneira que a culpa seja, como já dito, consciente, devendo refletir uma conduta desonesta do agente. Não se trata de mero descumprimento da legalidade, mas de infração séria e efetiva aos deveres do agente. É o que parece afirmar a jurisprudência:
“Para a configuração de qualquer dos tipos previstos nos incisos do art. 10 da referida lei, é imprescindível que o agente tenha causado efetiva lesão aos cofres públicos, ensejando perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens e haveres das entidades da administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos poderes da união, estado, distrito federal, municipal ou território. – Não se pode reduzir ou circunscrever-se a improbidade administrativa à hipótese de simples infração ao princípio da legalidade, conforme se depreende do texto do art. 11. A eventual ilegalidade, cometida pelo administrador, somente configurará improbidade administrativa quando sua conduta tentar efetivamente contra padrões da moralidade administrativa. – Apelação improvida”.[18]
Realmente, a culpa tratada no art. 10 deve ser grave a ponto de se confundir com o dolo, pois é “incompatível a forma culposa com o desejo de se obter determinado resultado, que se sabe ofensivo à ordem jurídica mediante certa conduta humana”.[19] Assim, a culpa tratada no artigo 10 não pode ser a culpa leve ou levíssima; deve ser a culpa grave e gravíssima, próxima ao dolo.
Em conclusão, o dolo, nas hipóteses dos arts. 9º e 11, confere ao magistrado o dever de demonstrar, mediante a devida motivação, que o agente almejou atingir um resultado vedado pela norma. Quanto à modalidade culposa, prevista no art. 10, caput, verificou-se que ela deve ser grave ou gravíssima, próxima ao dolo, devendo a ofensa ser qualificada pela específica censurabilidade ético-jurídica de quem se revela como desonesto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS